quarta-feira, junho 02, 2010

ENEATIPO III. AMOR NARCISISTA

      Enquanto me pergunto como ou o que é o amor-vão, evoco uma cena de um antigo filme 
sobre as mulheres de Henrique VIII em que uma de suas amantes irrompe na sala do palácio no 
mesmo momento em que o verdugo se dispõe a cortar a cabeça de sua predecessora. Vai 
perguntar-lhe qual é o vestido que deve usar esta noite. O que sobressai na cena  é a monstruosa 
desconexão de um mínimo laço amoroso por sua rival, absorta como está em seu próprio prazer. 
Porém não se trata de um prazer propriamente dito, mas de um produto deserotizado do eros: a 
paixão por sua aparência. 
      Que a vaidade seja um produto da degradação do amor, recorda-me particularmente o 
sonho de uma mulher de caráter vaidoso no qual, em meio a uma grande conflagração mundial, só 
queria que a levassem para comprar um vestido, dando claras mostras de que não lhe interessava o 
que estava acontecendo. Sente-se na cena como uma menininha que quer a si mesma e deseja que 
a queiram por esta distinção. 
      Tal preocupação com a imagem chama-se comumente “narcisismo”, e por isto se poderia 
falar do amor do vaidoso como um amor narcisista. Ainda que o termo “narcisista” tenha sido 
aplicado a diversos tipos humanos, e o interesse por roupas, cosméticos e aparência pessoal seja 
somente uma das manifestações do narcisismo próprio do eneatipo III, tão freqüente como a 
imagem de si como pessoa competente, como alguém que pode fazer, e tem capacidades. 
Antecipando-me um pouco ao tema do capítulo final (sobre os males da sociedade) direi que o 
competitivo afã de eficiência asfixia a própria capacidade amorosa e torna irrelevante a alheia. Uma 
breve historieta de Quino o expressa muito bem: vê-se num primeiro quadro, alguém como um 
empresário, sentado em seu escritório, lendo uma passagem do evangelho que diz que “é mais fácil 
um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. Na imagem 
seguinte, ele aparece telefonando para o Museu de História Natural do Cairo para informar-se das 
dimensões de um camelo. Em seguida, encarrega sua secretária de fazer uma chamada para a 
metalúrgica Krupp… somos narcisistas tanto quanto vendemos nossas almas pela glória – uma 
entidade que só existe no olho alheio. É paradoxal que um aparente amor a si mesmo (indulgência 
quanto ao próprio desejo tipo menininha que quer que lhe comprem um vestido) conviva com uma 
incapacidade de valorizar a si mesmo. A própria valorização faz-se dependente de um espectador
que aprova, quer e distingue ou, mais exatamente, a valorização do mundo torna-se um paliativo 
que distrai da vivência de vacuidade, artificialidade e perda de identidade. 
      Trabalhar para a própria imagem distrai de trabalhar para si, e do mesmo modo constitui 
uma anteposição ao natural e espontâneo resultando em uma boa capacidade de controle sobre os 
próprios atos. Porém um excessivo autodomínio supõe um obstáculo para a capacidade amorosa, 
pois implica em uma não-capacidade de entrega. Tão acentuada está a valorização do controle que 
empalidece a do amor, que pode ser sentido como algo secundário em relação ao trabalho ou ao 
êxito, algo sentimental, piegas, de mau gosto. 
      Uma complicação é a competição com o companheiro; outra, o excessivo controle do 
companheiro ou dos filhos; uma terceira, a dificuldade da entrega, que pode manifestar-se a nível 
físico como na caricatura de Jodorowsky: um super-homem sexual elástico com infinitos dedos que 
terminam em línguas, com uma extraordinária capacidade de dar prazer que tanto o absorve que 
não lhe sobra atenção para gozar. Por trás desta incapacidade de entrega está a desconfiança, o 
medo da rejeição, o medo de cair no vazio; uma desesperança de fundo num caráter aparentemente 
otimista: sentir que tem que manter tudo sob controle, cuidar de si mesmo. 
      Para a pessoa cuja imagem exige autodomínio e domínio das situações pode ser que o 
anseio de amor se associe a um anseio de deixar-se dominar, e com razão, pois somente com a 
renúncia do seu próprio domínio e manipulação pode permitir-se ser profundamente tocada. Lembro-
me de ter visto este tema tratado no cinema em Swept away, onde uma mulher desenvolve uma 
paixão intensa por seu companheiro de naufrágio depois que este a seduz. No entanto, passado o 
período em que o amor envolve sacrifício de vaidade, este pode ser reinterpretado como mero 
masoquismo, e igualmente ocorre quando o sacrifício da própria imagem não chega a ser 
correspondido com o amor desejado. 
      O amor narcisista é um falso amor, diferente do amor acariciante do EII já que se expressa 
mais em atos do que na expressão emocional. Associa-se a uma atitude efetivamente mais serviçal. 
No entanto é mais terno que o EI, cuja benevolência é menos sentida. Todavia, ante a frustração, 
torna-se acusador e adota uma posição de vítima agressiva. Não é que reclame como o EIV, pois 
fala pouco o que sente, porém com sua acusação fere a autoestima de quem o frustrou. Expressa a 
sua raiva sem escândalo aparente, porém com palavras cortantes, precisas e afiadas – e 
preferivelmente diante de testemunhas. É nestes momentos, nestas fases da relação, que se torna 
mais notório o fato de que não acredita verdadeiramente no amor. Mesmo quando o recebe não 
pode acreditar nele, pois não poderia ser resultado de sua arte de seduzir e de sua aparência, de 
sua capacidade de deslumbrar e de ocultar os próprios defeitos? A dúvida – mesmo que afastada da 
consciência – alimenta a sedução, e quanto mais se entrega ao cultivo de sua imagem, mais à 
mercê do outro fica e mais se defende dele através do domínio de si e do cultivo da independência. 
Sua independência se nutre da dependência de outros: é o poder que confirma o haver-se tornado 
indispensável. O amor do EIII, portanto sabe fazer-se indispensável e alimenta a dependência.  
      Enganam-se o homem e a mulher plásticos, ao desconhecer sua inumanidade e assim 
poder manter uma ilusão de benevolência. Dominam o papel amoroso, como dominam 
eficientemente todos os papéis; ignorantes do seu sentir, confundem facilmente o sentimento 
imaginado com a realidade. O mesmo rol amoroso pode ser difícil de sustentar, dado que a 
intensidade da paixão por gostar gera intolerância à crítica ante o perigo da frustração. As facetas da 
perturbação amorosa que então aparecem são a frieza e a agressão. 
      O amor ao tu está submerso na própria imagem. É, um amor cimentado na necessidade de 
validação pelo outro; orienta-se a serviço da necessidade do outro e pode-se dizer que o segundo 
serve ao primeiro (quer dizer, a necessidade do outro é primária, e a generosidade, uma estratégia 
sedutora). 
 No mundo das relações em geral, pode-se afirmar que este caráter necessita do outro, por 
que se sente através do seu reconhecimento; é mais amistoso do que a maioria, mais extrovertido, 
mais voltado  para o outro. Irradia alegria, benevolência e adaptabilidade, mas também 
superficialidade. Tanto no plano social como no das relações sentimentais pode-se falar de um amor 
sedutor, já que aparenta estar mais com o outro do que verdadeiramente está, e encobre a forma 
como se serve dele. Uma obra prima na retratação desta situação é o personagem de Becky em La 
feria de las vanidades (A feira das vaidades) de William M. Thackeray.
      O amor a Deus no caráter vaidoso tende a ser eclipsado pelo amor humano em suas duas 
formas: amor a si e ao próximo. Este traço característico seguramente contribui para a secularização 
da cultura norte-americana e do mundo moderno em geral. O sentido prático e o utilitarismo 
predominam sobre os valores universais; admira-se as pessoas porém não se valoriza o abstrato ou 
transpessoal. Quanto a um caminho espiritual trata-se no geral do tipo de pessoa que diria: “Que 
caminho?” Enfim, uma pessoa mundana, como caricaturiza Chaucer no personagem do monge 
elegante e prático em Contos de Canterbury. 

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