Falta-nos apenas considerar as perturbações da vida amorosa do medroso. Falar de medo é
falar de desconfiança, e existe incompatibilidade entre a desconfiança e o amor – porque falar de
desconfiança é falar de sentir-se ante um possível inimigo, e não é fácil amar os inimigos.
Se há temor, e porque o temor exige estar em guarda, teme-se a entrega. Teme ser
enganado, submetido, humilhado, controlado; e isto leva também ao autocontrole e à inibição da
corrente da vida em vista de uma excessiva necessidade de proteção.
Não menos importante que tudo isto é, no entanto, a contaminação do amoroso com as
motivações autoritárias que caracterizam este tipo de personalidade. Digo “motivações”, no plural,
para abarcar com o termo tanto a paixão de mandar como a mais comum paixão de obedecer – ou,
melhor, de ter uma autoridade para seguir.
Ainda que na apresentação que fiz dos caracteres não assinalei as três variedades de cada
um deles segundo a protoanálise, faz-se necessário, no caso dos autoritários-suspicazes que
constituem nosso EVI, diferenciar aqueles demasiado inclinados ao culto de heróis, daqueles que
tendem à grandiosidade e a uma visão heróica de si mesmos. No primeiro caso, trata-se de pessoas
muito dependentes, para quem a angústia de escolher e a insegurança com respeito a suas próprias
capacidades os leva a uma excessiva necessidade de pai. No segundo, aqueles que, em rivalidade
com seu próprio pai (às vezes em corpo de mãe) assumem a autoridade e se elevam em relação
aos demais esperando sua subordinação. Assim como a angústia dos primeiros se acalma ao
encontrar protetores, tranqüiliza aos segundos sentirem-se poderosos e obedecidos – como mostra
uma caricatura de Hitler: ante uma imensa assembléia, rodeado por seu estado maior, em um
estádio em que se ergue uma grande suástica, abre seu discurso dizendo: “Creio poder dizer sem
medo de equivocar-me...”
É de interesse saber que Hitler, mal-tratado por seu pai quando criança, desenvolveu a
intenção de dar um bom pai ao seu país. Os exemplos extremos (assim como o exagero da
caricatura) nos ajudam a compreender o mais sutil, como no caso de muitos que vão pela vida
oferecendo-se como pais aos necessitados de autoridade. Para alguém que gosta de mandar, a
obediência é uma declaração de amor, para conseguir filhos obedientes, não obstante, terá que se
oferecer como pai benevolente, como o lobo vestido de ovelha na fábula.
No entanto, não é mais amoroso que o rol de pai o rol de filho, e a maioria dos covardes
passam a vida como orfãozinhos, buscando a proteção de alguém mais forte. Sua posição poderia
traduzir-se em um intercâmbio de admiração e reconhecimento. “Aceita-me como filho e te darei
minha devoção filial”.
Não é que não existam diferenças de estatura na mente como no corpo, e não é que numa
relação determinada esteja bem que um ou outro tome certo tipo de decisões; porém não é
igualmente certo que a maior parte das pessoas é incapaz de relações fraternais igualitárias? É esta
a perturbação do amor que surge em resposta ao medo, e que é característica das pessoas em cuja
personalidade ele é central. Assim como alguns vão pela vida demasiado orfãozinhos buscando
proteção, existem outros que vão demasiado “paternalisticamente”. Um seduz pela inofensividade; o
outro oferecendo orientação e seu conhecimento de certas verdades. Trata-se, pois, de um pai que
diz como são as coisas, que se apaixona em ser um mestre, e que pede adesão, fidelidade e
obediência não só com os atos, mas também na maneira de ver.
Independente de ser um problema a desconfiança ou a excessiva entrega a partir de um
sentimento de obrigação ou dever temeroso, existe o problema da ambivalência: existem amor e
ódio; confiança e desconfiança; domínio e, outras vezes, submissão – e uma contínua pergunta
acerca de qual seja o sentimento verdadeiro ou a atitude certa. Penso que quando Freud definiu a maturidade como um deixar para trás a ambivalência
infantil, disse algo de validade universal, porém especialmente descritivo da situação do EVI, para
quem chegar a amar é destituir-se do ódio inerente à sua situação de inimizade frente a um mundo
fantasmagórico.
Além da presença da agressão no ambivalente mundo do temeroso, o amor dificulta seu
caráter acusatório que pode fazer-se torturador.
Não se pode falar de amor a alguém quando se tem a posição autocondenadora
característica da psiquis do EVI. Falta amor pela própria criança interior nesta psiquis que funciona a
partir do controle – enaltecendo o dever – mais que a partir do desejo. Pode-se dizer que,
acusatoriamente, o temeroso se endemoniza: um demônio interior aponta para fora de si dizendo “lá
está o demônio” e os principais acusados são a espontaneidade e o corpo. Tudo tem que passar
pelo controle consciente, porque implicitamente se pensa (na linha de Freud) que se tem um fundo
monstruoso que, se liberado seria algo horrível e incompatível com a vida civilizada.
No tocante às relações de casal e ao mundo social, aparecem o medo e a agressão em
contínuo intercâmbio. Teme-se a espontaneidade como se fosse agressão e a repressão engendra
agressão verdadeira. Seguramente a quantia de agressão em nosso mundo é, em parte, reflexo da
grande proeminência do caráter EVI em seu seio.
Com respeito ao mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas, pode parecer que os
EVI não são culpáveis como o são em sua falta para com os outros dois amores. Existe uma
tendência religiosa, uma tendência ao arquetípico, ao mundo ideal, que às vezes se torna um
substituto de valor no mundo da ação, como sugere esta história de Nasruddin na qual um alfaiate
diz que vai entregar um traje para certa festa “se Deus quiser”. O cliente lhe pergunta: “E quando
seria se deixarmos Deus fora do assunto?”. Também o religioso substitui o aspecto emocional
interpessoal. Basta pensar no amor de tantos nazistas por sua mitologia, seus clássicos e a grande
música, em uma atitude segundo a qual “meu Deus é maior que teu Deus, minha cultura é maior que
a tua” ou “estou mais próximo da grandeza que tu”.
O indivíduo sente-se endeusado pela proximidade a seu Deus, porém nisto existe algo
dessa paixão de endeusamento que é parte do sistema paranóide. Nele a busca de amor se
transforma em anseio de poder, que é por sua vez desejo de identificar-se com o pai poderoso.
Canetti o ilustra em seu personagem que ruge do alto do Sinai com grande juba. De forma
paternalista quer confundir o outro (e seguramente se confunde) em interpretar, como amor aos
demais, sua paixão de lhes impor a verdade segundo o Livro dos Livros. É assim como o amor a
ideologias ou a personagens quase divinos se sente próximo ao amor a Deus, porém trata-se de
uma espécie de narcisismo vicário; como uma criança que diz à outra de sua idade “meu pai é maior
que teu pai, olhe como é grande o meu pai”.
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