domingo, maio 30, 2010

ENEATIPO IX. AMOR COMPLACENTE

     Neste caso pode-se pensar no amor preguiçoso como o de alguém que não está
plenamente vivo. Um amor tíbio, a “meio-fogo”, em que a pessoa não está inteira; oposto ao amor-
paixão, pode-se caracterizar como um amor fleumático.
      Igualmente cabe dizer que é um amor distraído. Está disposto a dar muito no plano da ação,
mas lhe falta atenção à verdadeira necessidade do outro. Vem à minha mente como instância
concreta desta falta de atenção à verdadeira interioridade do outro o que alguém comentou uma vez
de sua - por demais prestigiosa – analista: “É como uma nana.” Um cuidado bem intencionado onde
falta comunicação profunda, empatia e entusiasmo. Seguramente são os EIX aqueles que mais
freqüentemente dão ao outro aquilo a que se refere a expressão “presente de grego”: um presente
caro com o qual o destinatário não sabe o que fazer nem onde por.
      O amor maternal do EIX pode ser inclusive percebido como invasão. Conheço, por exemplo,
alguém que recorda haver-se sentido asfixiada pelo peito da mãe. Ainda que se trate de uma
recordação real ou de uma extrapolação ao passado de experiências posteriores e inclusive
presentes, seu conteúdo é significativo. A menina sentia-se também sufocada pela pesada colcha
sobre sua cama, recordação em que parece cristalizar seu sentimento de moléstia ante a mãe que
velava por ela em um sentido concreto, mas por quem não se sentia abrigada em um sentido íntimo.
      Pode tratar-se de um amor que não escuta, mas que impõe ao outro sua própria compulsão
de maternidade ou abnegação conjugal. A situação foi comicamente expressada por Woody Alen em
uma imagem de seu filme  Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo...: um grande peito
avança distribuindo leite como um abastecedor e assolando a paisagem.
      O papel de uma pessoa generosa supõe quase uma segunda natureza, mais que um rol
consciente, faz parte da estrutura da personalidade que a pessoa seja abnegada. Mais
inconscientemente que em outros caracteres, trata-se de um amor sedutor pois o indivíduo começou
muito precocemente a sentir que necessitava renunciar seus próprios interesses para ser aceitável.
Talvez não estivesse seguro de sua situação familiar – como no caso de uma criança adotada – e
sentiu que não merece, que não está à altura, que poderia perder seu lugar. Ou foi o sétimo filho de
uma família de dez e, para fazer-se ver e escutar, para sobressair, não encontrou outra maneira
senão a de não dar problemas. Em outras palavras, seu presente aos pais é a negação de suas
necessidades, de sua frustração, de seu clamor ou exigência.
      Já que a adaptação aos desejos e exigências alheios se faz predominantemente através da
conduta, o amor no EIX é – como no caso do EI – um amor ativo, e em seu aspecto aberrante pode
caracterizar-se como abnegação ou benevolência sem a experiência do amor. Tanto na relação
entre os sexos como na maternidade, trata-se de um amor institucionalizado, ajustado a um papel
social costumeiro.
      A desatenção ou desinteresse com respeito à experiência mais íntima do outro pode ser
entendida como uma revanche por sua excessiva deferência para com o outro (no plano do concreto
e prático): uma “agressão passiva”. Outras formas semelhantes são a negligência, os atos falhos, os
esquecimentos e, inclusive, a obediência automática quando esta se torna destrutiva.
      Ao examinar a experiência amorosa do EIX em termos da tríade de aspectos fundamentais
do amor vemos que predomina o amor ao próximo, enquanto que o amor por si mesmo é sentido
como a mais profunda proibição. O amor a Deus tende a ser uma experiência menos proeminente
que o amor humano, ainda que uma forte tendência religiosa possa fazer pensar que às vezes não
seja bem assim. A tendência religiosa deste tipo de pessoas tende a  ser resultado da identificação
com os valores da sociedade e de seu amor ao rito, e pode tratar-se de uma pessoa ativa e às vezes
piedosa e, não obstante, desespiritualizada pois sua relação com o divino não implica em uma
disposição (ou um interesse) à vivência mística.
      Parece, no entanto, que para alguns o amor à atividade artística constitui uma ponte entre o
material e o espiritual: a arte é um fazer, uma atividade (especialmente o esculpir ou pintar, cujo
produto é concreto) e, contudo, um veículo de experiência espiritual e emocional às vezes velada.
Chamou-me a atenção ao revisar diversas biografias, encontrar tanto políticos como artistas entre os
eneatipos IX. Parece que uns são os EIX “propriamente ditos” e, outros IX, aqueles que encontraram
o contrapeso para uma vida excessivamente prática num fazer artístico interiorizante.
      Há muito de mãe no EIX, como se o doador se intensificasse com o papel de mãe; ainda
que em seu momento lhe faltou um profundo amor e se resignou a não senti-lo, é como se quisesse
preencher esta carência com seu próprio dar ao outro, projetando sua necessidade em um terceiro.
A renúncia é altruísta e a necessidade do outro passa a ser a própria; o outro passa a ser, pois, um
substituto de si, de seu ser.
      Os acidiosos (e particularmente um subgrupo deles) se permitem, contudo, uma forma
especial de amor a si mesmos; uma forma particular de amar-se a si próprio que é às vezes um
desvio ou perversão: o amor-comodidade. Por muito trabalho que possa dar o pôr-se cômodo, é um
substituto do verdadeiro amor a si mesmo, uma compensação - através da comodidade, o não-conflito e a suavidade - de uma frustração mais profunda. Expressões deste amor-comodidade são o
álcool, o tabaco e a comida. O afeto, inalcançável, é substituído por tais estímulos em tipos como o
gregário Mister Babbit, com seu charuto.
      A falta de amor a si mesmo no EIX manifesta-se no desconhecimento de suas próprias
necessidades profundas, a desconexão da criança interior, a perda de espontaneidade lúdica, o ter-
se feito adulto antes do tempo e muitas vezes, de forma muito visível, a tomada de
responsabilidades.

quarta-feira, maio 26, 2010

ENEATIPO I. AMOR SUPERIOR

      Escassamente se distingue no uso habitual a ira e o ódio, posto que se chama ódio o oposto
do amor. Segundo isto, a paixão do EI seria um antiamor. Seu caráter manifesto, no entanto, não é
este “contra-amor”, que descrevemos como próprio da violência, o atropelo e a exploração do EVIII.
Já vimos como o EI é um caráter bom – entendendo-o por alguém que não odeia, mas que ao
contrário,  professa o amor.  Assim como o amor do EII é um fenômeno emocional em que falta a ação, o amor do EI está
constituído de intenções e atos em que falta a emoção: um amor pouco terno, duro inclusive, dir-se-
ia, se a proibição da dureza e um empenho consciente em ser terno não o fizessem menos
aparente.
      As personalidades dos eneatipos VIII e I são comparativamente agressivas, só que em um a
agressão (valorizada) está nua e em outro (desvalorizada), negada, e de certo modo
supercompensada , especificamente na vida amorosa e no aspecto amoroso das relações e
situações humanas. Enquanto que o EVIII é um “vilão” explorador que exige indulgência ou
cumplicidade, o EI se põe frente ao outro como doador generoso e, em virtude disto, sentirá que tem
direitos correspondentes.
 Sua agressão não desaparece, no entanto, mas se metamorfoseia em exigência e
superioridade, em um domínio ou controle sobre o outro não menor do que no caso do caráter
avassalador – só que aqui se disfarça (ante os olhos do próprio sujeito) de algo justificado por
princípios impessoais.
      Uma ilustração de Quino explica o profundo auto-engano dos “justiceiros morais” ou
perfeccionistas (para distingui-los dos justiceiros amorais luxuriosos), que disfarçam seus desejos de
exigências justas presumidamente desinteressadas: a justiça, que comumente se personifica em
uma mulher cujos olhos vendados não distinguem pessoas nem interesses, leva uma venda sobre
somente um dos olhos (que comicamente nos recorda o tapa-olho de um pirata, em sua imagem
estereotipada), e com sua poderosa espada corta uma fatia de presunto.
      A imagem do presunto aqui parece contradizer implicitamente essa pretensão
desinteressada dos puritanos, caricaturada por Canetti no retrato de uma vestal incorruptível cuja
boca está dedicada exclusivamente ao serviço das palavras e nunca se corrompe recebendo algo
tão baixo como os alimentos dos que vivem, os comuns mortais.
      A forma de afirmação dos desejos é, então, sua transformação em direitos; e assim como os
desejos do rebelde se sustentam em seu poder bruto, os do virtuoso se apóiam em sua
superioridade moral. A tal transformação do “eu quero” em “tu deves” alude Quino no resto do seu
cartoon, que nos mostra, junto à poderosa mulher gorda (que como paródia da justiça cortava o
presunto), sobre uma cadeira alta, um juiz; um juiz que, por sua estatura e tipo de cadeira que usa,
assim como pela presença de um brinquedo no chão e seu gesto de lamber-se, enquanto come, é a
imagem de uma criança, tão impotente como poderoso é o braço da justiça.
      Aludir a esta perturbação do amor como “amor superior” implica em um “amor inferiorizante”:
o outro, tão beneficiado em aparência por seus atos benévolos, vê-se privado de qualidade moral ou
estatura espiritual; é em certa medida vilanizado enquanto é controlado e exigido.
      A inferiorização do outro se faz através da crítica, seja a crítica explícita e consciente a seus
rendimentos, decisões ou atitudes (“fizeste isto ou aquilo mal” ou “não aprovo tal aspecto de tua
vida”) como a crítica menos explícita de um não se dar por satisfeito ante manifestações do outro
que não alcançam o ideal de excelência perfeccionista.  Entre os três amores, o mais dominante aqui é o amor admiração: o amor à grandeza, ao
ideal. O amor ao próximo vem em segundo lugar, porque é um amor à altura dos ideais, um amor
que se associa ao dever, por ser um amor pobre em  ternura. E, mais postergado, encontra-se o
amor a si mesmo, inconsciente e negado. Sua moral não permite os próprios “desejos egoístas”
assim como não permite os alheios. Pode-se falar neste caráter de uma atitude antivida, em vista do
excessivo controle repressor dos próprios impulsos, do tabu de sua instintividade e da do outro.
Ainda que se trate do amor superprotetor em relação aos filhos ou do amor possessivo em relação
ao parceiro, não só há uma perda de espontaneidade do próprio indivíduo, mas também uma
relação que destrói a espontaneidade do outro, que se vê envolto em um campo repressor invisível.
      Este amor, excessivamente condicional, exige méritos inalcançáveis e perde a
espontaneidade. Desconhece sua destrutividade; assume o papel parental não para apoiar, mas
para interferir com a criança interior do outro.

segunda-feira, maio 24, 2010

ENEATIPO VIII. AMOR AVASSALADOR.

    
      Seguindo a mesma ordem de caracteres do capítulo anterior e abordando agora aqueles da
área superior do eneagrama, vejamos a perturbação do amor nos luxuriosos.
      Se a indiferença emocional constitui um  desamor, seria próprio falar de  atração luxuriosa
mais que de  amor luxurioso como de um  contra-amor.  Conseqüência da sede de intensidade, o
impulso para a união sexual toma lugar mais do que conduz à união íntima entre as pessoas,
enquanto que o luxurioso (tal como disse Stendhal de Don Juan) considera o sexo oposto como
inimigo e busca somente vitórias. “O amor à maneira de Don Juan” – reflete Maurois - “assemelha-
se ao gosto pela caça. É uma necessidade de atividade que precisa ser despertada por objetos
diversos”.
      O amor luxurioso é o amor como no protótipo  do “Don Juan” original (quer dizer, o burlador)
que antepõe seu desejo para o outro: um amor que invade, que utiliza, abusa, explora, e que exige
por sua vez um amor que se confirme através da submissão e do deixar-se explorar. Custa-lhe
receber porque não acredita no que recebe. Porque em sua posição cínica, não acredita no amor do
outro, tem que pô-lo à prova. Põe à prova o  amor do outro, por exemplo desequilibrando-o e
observando-o em situações de emergência, ou pedindo-lhe o impossível, pedindo-lhe a dor e a
indulgência como demonstração de sua sinceridade.
      À parte o aspecto excessivamente avassalador do amor luxurioso, existe um paralelismo de
íntima desvinculação que deriva de sua grande necessidade de autonomia. Posto que se trata de
um caráter duro que anda em guerra com o mundo, é naturalmente difícil que se possa falar de amor no sentido de união ou de relação – exceto num sentido exterior. Recebe mal o amor do outro, por
mais que constitua uma defesa da própria independência; nega o que lhe é dado e nega o próprio
desejo de recebê-lo, posto que significa uma invasão de seu sistema e representa o perigo de sentir-
se débil.
      O amor (de casal) do EVIII não só é invasor, excessivo e avassalador, como também
violento. Não poderia ser menos, já que o caráter violento se revela sobretudo na intimidade. Além
de “castigador” exigente e provocador, é anti-sentimental: busca um amor-contato, concreto, não-
emocional, que dura o que dura o contato; um amor no aqui e agora sem compromissos e com a
negação da dependência, que põe a pessoa em relação com a sua fragilidade, sua insegurança.
      O aspecto pseudo-amoroso está no erótico; também em uma sedução que é como uma
“compra” do outro ou sua indulgência em certas situações. O amor compaixão é negado porque é
incompatível com a notória ênfase do amor-necessidade. O amor-admiração, no entanto, está mais
à mão. Por mais que a pessoa seja competitiva, pode reconhecer e admirar intensamente, sobretudo
quando se trata de modelos fortes. O amor a si, todavia, é o mais forte; o amor ao próximo vem em
segundo lugar, apesar de tratar-se de um ser aparentemente anti-social: é contrário às normas mais
que às pessoas concretas, e não é tanta como parece a diferença entre os eneatipos I e VIII no que
se refere aos impulsos. Em um caso a agressão está muito racionalizada e se percebe como um
serviço de boas causas; no outro se reconhece a agressão como tal, e existe uma espécie de
inversão de valores em que o bom é considerado mal e vice-versa. Porém existem laços humanos
que vão mais além do que são, podem ser mais valorizados do que se considera bom, e a
solidariedade social pode levar a atitudes de vingança, de clamor por justiça pelo outro, comparáveis
a tomar-se a justiça nas próprias mãos quando se trata da própria vida. O amor a Deus ou ao ideal e
transpessoal é o mais débil dos três.
      O aparente amor a si mesmo do luxurioso se reconhece como um pseudo-amor, se visto de
perto; porque na insaciabilidade avassaladora da busca de prazer, vantagem ou poder, a pessoa
não reconhece sua própria necessidade mais profunda: a fome amorosa mesmo. Não é a criança de
peito interior que se satisfaz, mas a um adolescente titânico que se propôs a conseguir o que lhe foi
dado anteriormente, de tal forma que sua própria força em reclamá-lo passa a ser um substituto do
desejo amoroso.

quarta-feira, maio 19, 2010

ENEATIPO IV. AMOR-ENFERMIDADE

  
       Em sua obra Cinco Rostos do Amor, André Maurois usa o termo “amor-enfermidade” para designar a paixão amorosa atormentada que caracteriza o mundo psicológico de Proust. Diz Maurois que, à diferença de Madame de Lafayette, Rousseau ou Stendhal, Proust já não acredita que a violência da paixão “se torne legítima pela qualidade excepcional dos seres que são seus objetos”. E acrescenta: “Veremos que considera o amor-paixão como uma enfermidade inevitável, dolorosa e fortuita.”
     Comentando esta observação à luz da psicologia dos eneatipos, diria que tanto o amor do EII como do EIV são apaixonados, com a diferença de que o orgulhoso acredita, exalta e idealiza sua paixão e o invejoso (que não crê em si mesmo) apenas a sofre.
     Pode-se dizer que a pessoa invejosa é propensa ao amor. A inveja é um sentimento carencial, uma voracidade do outro, uma espécie de canibalismo amoroso que se autofrustra por seu excesso. Este excesso leva à frustração por dois motivos: porque pede mais do que lhe é dado esperar e porque molesta o outro com sua insistência. A situação pode ser comparada à do bebê que morde o peito da mãe em seu afã; a frustração que o levou a mordê-la em primeiro lugar se soma à produzida por uma mãe dolorida que lhe faz cara feia ou o rejeita.
     A exigência excessiva é resposta à uma frustração anterior, naturalmente. É como se estivesse dizendo: “Dá-me porque não me deste o suficiente, compensa-me! Existe nesta exigência de compensação um matiz de vingança. Para um adulto que não se desconhece completamente, a situação se complica porque se sabe “mordedor”, e aquele que tem uma imagem negra de si mesmo – alguém que percebe a carga agressiva que existe em seu amor – não se sente digno e antecipa a rejeição. É algo bem conhecido que a antecipação da rejeição se torna realidade. Um conhecido chiste o explica: alguém se dirige para a casa de um amigo para pedir-lhe o violão emprestado. Já a caminho da propriedade vizinha, pensa que pode ser uma má hora pois talvez seu amigo esteja comendo. Nos poucos minutos de caminhada, fantasia que não só seu amigo ficará aborrecido como terá pouca boa vontade para emprestar-lhe o instrumento. Um violão é uma coisa muito pessoal para alguém que tenha se dedicado tanto a tocá-lo... Depois de ter batido na porta, o amigo o recebe e sorrindo lhe pergunta acerca do motivo de sua visita. Ele não consegue evitar responder: “Vá para o diabo com seu violão!”
     Mesmo sendo o gesto da inveja um excessivo pedir, demasiada exigência, esta necessidade do amor alheio se baseia em uma correspondente incapacidade de valorizar-se ou querer a si mesmo; a pessoa depende exageradamente do outro não por simples desconexão – como no caso do EIII – de seus valores, mas por uma desvalorização mais presente que chega a extremos de uma auto-agressão consciente ou de ódio a si mesmo, um sentimento de ridículo. Quando se fala de uma paixão amorosa, é este o tipo de amor o que se tem presente; o amor-enfermidade, como disse Maurois.
     Pode-se dizer que a intensidade da importância que se dá ao amor o converte numa grande paixão; porém mais que paixão poderia chamar-se enfermidade, por seu elemento de dependência e insaciabilidade. Uma dificuldade adicional para a pessoa que tanto necessita carinho se sinta querida, além de sua auto-invalidação é a invalidação do sentimento do outro: “Se tu queres a mim, que sou uma porcaria, que tipo de pessoa és tu? Se podes enganar-te tanto, tua necessidade deve ser tão grande quanto a minha.” A pessoa não pode conceber-se querida e não se permite a satisfação ainda quando poderia dizer-se que a conseguiu, embora isto seja difícil porque é muito característico deste tipo ver o que falta mais do que o que possui. O amor não é suficientemente perfeito, ou suficientemente exaltado ou suficientemente romântico para chegar a tocar a sua sensibilidade. Um amor tão suscetível de ser ferido ou frustrado se contamina de ressentimento precisamente pela frustração ou a necessidade.
     O EIV é um caráter demasiado serviçal, sempre à disposição, adaptável, inclusive obsequioso, empático, ajudante, sacrificado, que agüenta até níveis masoquistas a frustração e o sofrimento, porém ao mesmo tempo cobra-se ou se compensa por todo o seu sacrifício através de uma exaltação de seu próprio desejo frustrado, que se torna voracidade inconsciente.
     O amor dos invejosos torna-se mórbido pela intensidade de sua sede do outro, por sua interpretação pessimista das situações e sua tendência à autofrustração. Tão característica como isto ou mais é a tendência a pedir por meio de um “pôr-se doente”. A associação da atitude romântica com a enfermidade é suficientemente reconhecida para que tenha graça para qualquer um o chiste que encontrei tempos atrás em uma revista: um médico inclinado sobre o leito de um enfermo, dizia à sua mãe: “Seu filho é um poeta muito doente.”
     Quanto menos permitido é o pedir e mais vergonhoso o desejo, maior é a necessidade de atrair o objeto do desejo “inocentemente”, quer dizer, sem culpa, através da intensificação da experiência – intensificação histriônica, pode-se dizer – da necessidade e sua frustração. Quanto mais proibida é a exigência, mais necessário se faz para este caráter exigir atenção e cuidados, aparentemente sem pretendê-lo, seja através do sofrimento, de seu papel de vítima ou de sintomas físicos e dificuldades variáveis.
     Às vezes, chama-se a isto, “chantagem emocional” e observa-se não só entre amantes como entre pais e filhos. A sedução através da debilidade e da necessidade é para nós um recurso feminino tão conhecido como a sedução das irresistíveis, que um par de gerações atrás se expressava em desmaios. Não é, no entanto, mais que uma amplificação do pranto com que toda criança chama sua mãe pedindo-lhe a satisfação de suas necessidades ou socorro.
     Contudo, é necessário distinguir o lamento da verdadeira compaixão por si mesmo. Apesar de sua busca de compaixão e sua queixa de não encontrá-la o EIV dificilmente a sente por si e nem sequer lhe resulta fácil recebê-la. Nem para receber coisas boas sente-se com direito, pois não só não se ama, odeia-se, desvaloriza-se e se rejeita.
     O amor transpessoal, mais além do eu e do tu, pode-se dizer que não está caracteristicamente na esfera do religioso nem da do bem tanto como na esfera da beleza. Os valores superiores com os quais a pessoa se conecta são principalmente o amor à arte e o amor à natureza. Talvez o amor a um Deus pessoal se complique com o não se sentir merecedor, porque a evocação do divino só intensifica a dor da culpa. Além do mais admirar é coisa muito problemática para os competitivos.
     O erótico pode ser veementemente perseguido, pois é algo que tira o indivíduo do ordinário e acalma sua sede de intensidade; porém existe neste caráter uma dificuldade de entregar-se ao prazer, e também ao outro. Tanto é assim que Wilhelm Reich interpretou o masoquismo como expressão de uma inibição orgástica. Também é proeminente a expressão do amor-dar, tipo ágape, que se manifesta como orientação ao serviço, defesa dos oprimidos e empatia. Os que necessitam de piedade não sabem recebê-la, porém se apiedam facilmente dos demais.

terça-feira, maio 18, 2010

ENEATIPO V. DESAMOR

  
      Eu disse que existem caracteres aparentemente mais amorosos que outros, e comecei pelos que o são em grau mais notório. O que comentarei na continuação é um dos que parecem ser menos amorosos. Novamente, se o amor é um atributo da essência do ser humano – de seu eu verdadeiro ou núcleo central de seu ser - , é algo independente do caráter, seja este mais dadivoso, disponível e afirmador do outro, ou mais distante, duro ou crítico; trata-se de diferenças de programação ou de diferenças na estratégia interpessoal e, portanto pertencentes ao mundo do pseudo-amor mais que ao amor verdadeiro. Não obstante, o fato de que o esquizóide pareça menos amoroso vale tanto para ele que o vive a partir de fora como para si mesmo: enquanto que para o grupo dos histeróides, da ala direita do eneagrama, é mais fácil enganarem-se com respeito à sua própria capacidade amorosa, ao mais esquizóide dos caracteres é mais difícil que a qualquer outro se enganar, e pode sofrer agudamente sua incapacidade de relação verdadeira com o outro.
     Por mais que em sua tendência à autoculpabilização, o autista desconheça a medida do amor espontâneo em sua psiquis – do ponto de vista do ideal do que deveria ser ou fazer -, é também certo que sua programação se volta contrária a este impulso de unificação com o outro que Platão nos oferece em O Banquete, como resposta ao que possa ser o amor.
     O caráter esquizóide é contrário a este impulso de unificação com o outro, tanto que alberga uma verdadeira paixão por evitar vínculos. Se o amor supõe um interessar-se pelo outro, o esquizóide “autista” é aquele que não se interessa. Não só expressa pouco o seu carinho, como parece uma pessoa mais fria que as demais, mais apática, mais indiferente.
     Gosta de receber, sim, porém não pede, porque aprendeu que pedir pode molestar e teme que sua voracidade o leve a uma frustração maior do que a auto-imposta frustração de ser paciente. Inclusive o seu desejo de receber amor está amortecido já que se acomodou vivendo com o menos possível, com as mínimas necessidades que representem dependência de outros e com a necessidade de dar para receber. Mais ainda, tem dificuldade em saber o que recebe porque emocional e implicitamente não acredita no amor mais do que o EVIII, e tende a pensar que aqueles que o manifestam, fazem-no por seus próprios interesses, conscientes ou inconscientes. Ou seja, não acredita que seja digno de receber amor porque não se sente suficientemente valioso ou porque seu próprio desinteresse pelo outro o leva a sentir que não dá o suficiente.
     Existe, portanto, uma não-entrega ao amor, não-entrega ao outro, não-entrega à vida e um super controle do medo à entrega, da ameaça que significa a necessidade do outro. Em sua excessiva intolerância pelas exigências ou expectativas alheias, vive o desejo do outro principalmente como uma limitação.
     A mais subdesenvolvida das formas do amor é naturalmente o amor maternal, dadivoso e compassivo; o amor ao próximo se vê eclipsado pelo amor aos ideais e a preocupação por si mesmo. Existe pouco sentimento de camaradagem, pouco sentimento de comunidade ou fraternidade com os demais mortais. É também pequena a disponibilidade para com os filhos, que são vistos – mais do que no caso de outros caracteres – como um peso, um impedimento. Outras vezes, entretanto, dá-se uma projeção muito intensa da própria “criança interior” abandonada com o filho, e isto leva à super proteção e a um apego que se expressa em uma relação muito limitadora para este.
     Egoísta, o avaro também o é consigo mesmo; não se dá satisfações, pressiona-se e sente que deve ter méritos para dar sentido à vida.
     No amor de casal, os problemas derivam de sua escassa disponibilidade, da exigência de não ser exigido, do isolamento e da escassa empatia. São difíceis as decisões de convivência e matrimônio – que implicam na perda da privacidade e do controle exclusivo sobre a própria vida. A sexualidade pode não ser intensa e percebida como uma exigência a mais.
     O amor a Deus, cujas exigências se fazem menos presentes que as do próximo, passa a substituir em certa medida o amor humano, ainda que o mesmo amor a Deus se debilite se não está apoiado em uma experiência suficiente do amor humano e do amor a si mesmo. Apesar disso, resulta mais fácil, menos conflituoso relacionar-se com um objeto ideal. Correspondentemente, neste caráter está mais desenvolvido o amor-admiração (amor de filho para pai) que a generosidade.

sábado, maio 15, 2010

ENEATIPO VII. AMOR-PRAZER

      
      Resulta oportuno uma vez mais continuar nossa exposição com o sétimo eneatipo, já que se 
trata igualmente de um caráter sedutor e carinhoso. Só que sua forma de sedução é um pouco 
diferente e diferente é também sua forma de amar. A pessoa auto-indulgente necessita antes de 
tudo de um amor indulgente e, como aprecia não ser exigido e que não sejam postos limites, 
também oferece ao outro permissividade; tanto é assim que la Bruyére, em sua contemplação dos 
caracteres humanos, chamou a atenção sobre um que parece empenhar-se em cultivar no outro 
seus vícios e enaltecê-los. 
      Se o amor ideal que o orgulhoso tanto busca como oferece é um amor-paixão, o ideal de 
amor do guloso é mais suave, tranqüilo e a salvo de problemas. Um amor agradável que busca o 
agrado e que poderia chamar-se um “amor galante”, em associação com a vida cortesã da época 
de Fragonard e a corte de Luis XIV. Vem ao caso citar o que disse Hipólito Taine ao comparar esta 
forma de amor com aquela exaltada por Boccaccio: 
      “Boccaccio leva a sério o prazer; a paixão para ele, além de física, é veemente, 
constante inclusive, freqüentemente rodeada de acontecimentos trágicos e assaz medíocre 
para divertir. Nossas fábulas são alegres de maneiras muito distintas. O homem busca nelas 
a diversão, não o desfrute, é jocoso e não voluptuoso, guloso e não glutão. Toma o amor como um passatempo, não como uma embriaguez. É fruto bonito que colhe, que saboreia e 
que abandona."
      Pode-se dizer que a psicologia do EVII tende a uma confusão entre  o amor e o prazer – e 
portanto entre o amor e a não interferência na satisfação dos desejos. Porém a expressão amor-
prazer não evoca plenamente o fenômeno do amor tão leviano deste caráter amável e jovial que 
nem quer ser um peso para o outro, nem receber o peso de ninguém. Bem se poderia falar 
alternativamente de um amor-comodidade, o que nos convida a evocar tanto o aspecto grato e 
aprazível desta forma de vida amorosa como de sua limitação. 
      Uma ilustração da expressão menos que ideal de tal amor-comodidade nos é proporcionado 
por um chiste carioca – o que me parece apropriado em vista do espírito guloso do Rio de Janeiro -: 
uma mulher indignada reclama ao seu marido dizendo-lhe que a empregada está grávida. O marido 
contesta: “Isto é problema dela.” A mulher insiste: “Mas você a engravidou!” Ele replica: “Isto é 
problema meu.” “E eu, como fico?” Torna a mulher. O marido, despreocupadamente responde: “Isto 
é problema seu!” 
      Que um buscador de prazer bata em retirada diante da pessoa ou situação que anuncia 
aborrecimentos, compromissos, obrigações sérias ou restrições é, seguramente, um dos fatores que 
torna o amor guloso um amor instável, sempre exploratório: sabemos que tudo isto aumenta à 
medida que as relações se prolongam; porém não é o único fator, posto que a personalidade do 
guloso é, por si, curiosa e exploratória, e sempre o distante lhe parece mais atrativo que o que está  
próximo. 
      Precisamente a dificuldade de satisfazer-se no aqui e agora do mundo real é outro problema 
importante na vida amorosa dos “orais otimistas”, que constantemente os empurra para o ideal, o 
imaginário, o futuro, o remoto. Pensam que é o desejo o que os aliena do presente, porém é 
duvidoso que isto seja mais que uma aparência subjetiva: mais seguramente é uma implícita 
insatisfação que motiva sua contínua busca pelo diferente. E dificilmente o ideal por uma suavidade 
completamente indulgente que busca o guloso pode acontecer na experiência real pouco além do 
período de encantamento de uma relação nova. A vida tem seus problemas e, no mundo físico, todo 
cômputo deve tomar em consideração o atrito. O amor-prazer busca relações sem atritos  e sabe 
encontrá-las, só que em escassa medida podem chamar-se relações. Isto é ilustrado 
eloqüentemente por desenho de William Steig que apesar de não se referir ao amor em si, trata da 
relação humana.  
      Existe no EVII uma atitude amistosa generalizada. Trata-se do indivíduo que vai ao 
restaurante e, rapidamente conhece o garçom ou a cozinheira; conhece também as pessoas do 
mercado e entra em conversação facilmente. Sua atitude igualitária contribui para isto e é parte de 
seu caráter amável, simpático e sedutor. Qual é a base disto? Camaradagem? Existe um aspecto . exploratório e, ademais, uma busca de novidades e de experiências, uma busca de possibilidades, 
de marketing, por parte de quem está sempre procurando promover-se. Lembra o homem de 
negócios que busca um mercado, e seja quem for que encontre, quer conhecer a situação para ver 
se descobre oportunidades. Também destaca o aspecto de jogo: como é uma pessoa lúdica, 
aproxima-se do outro como faz uma criança em relação a alguém com quem pode brincar. 
      Pode-se entender a base desta não-relação a partir da informação que nos oferece o 
eneagrama sobre este eneatipo; um eneatipo (EVII) que se relaciona com os anti-sociais (EVIII) e 
também com os ensimesmados e distantes (EV). Na medida em que o guloso se parece com o 
luxurioso, vai pela vida como Don Juan, em busca de uma presa, e por mais que se apresente como 
um galã, leva dentro de si o aproveitador e, também, um esquizóide mais interessado em si mesmo 
do que no outro. Esta outra forma de egoísmo seria inaceitável para os demais se não fosse 
compensada por uma dose ao menos equivalente de generosidade galante. 
      Assim como o guloso é, em geral, um especialista em tornar aceitáveis os seus desejos, 
também é certo que no terreno específico do amor uma pessoa com este caráter tem pouca 
dificuldade em fazer-se conceder seus gostos – mesmo quando representem sacrifícios e saiam do 
convencional, como é o caso da infidelidade. Lembro-me de uma historieta de Quino que 
representava um personagem com características fisionômicas típicas de um charlatão, em seu 
consultório de médico rodeado de diplomas. Uma anciã que tinha vindo consultá-lo 
(presumidamente por um mal cardíaco)  é testemunha das instruções que dá para sua secretária: 
“Por favor, se minha mulher ligar, diga que se comunique com minha senhora para que combinem 
com minha esposa o aniversário dos meninos.” Na vinheta seguinte se vê que a velha senhora 
passou muito mal. 
       Na discussão que se faz dos traços do caráter narcisista no DSM-III põe-se em relevo o 
entitlement, que poderia traduzir-se por um sentir-se com direitos de talento, direitos de 
superioridade. Porém, a superioridade que o EVII persegue em uma relação amorosa é diferente 
daquela dos que vão pela vida como pessoas importantes e assumem um papel de autoridade. 
Neste caso trata-se de uma importância mais sutil: não é que espere ser obedecido, mas escutado e 
reconhecido como alguém que está inteirado. O homem pode esperar que a mulher seja seu público 
por exemplo e, igualmente, ocorre com um pai em relação ao seu filho. Correlacionado à 
necessidade do charlatão de ser ouvido está o fato de que naturalmente não sabe ouvir, e pode ser 
que ele mesmo não se aperceba disto, já que oferece grande empatia em sua atitude atenta. 
Também em matéria de paternidade, o amor dos auto-indulgentes é menor do que aparenta ser, 
devido ao seu talento persuasivo e seu encanto. Um pai pode apenas estar presente em seu lugar e 
fazer-se querer, no entanto, através de presentes e sorrisos, de modo que seus filhos não se 
apercebam de sua ausência até estarem crescidos. Neste caso, parte de sua oferenda amorosa 
será a permissividade – só que às vezes os filhos chegam a percebê-la como um não querer 
incomodar-se e intuem que se sentiriam mais queridos se lhes fossem impostos limites.  Vejamos 
agora como é, nos encantadores, a distribuição da energia psíquica entre as três 
correntes amorosas que vimos anteriormente. 
      A hierarquia entre os três amores é, no geral, um pouco diferente do caso dos orgulhosos. 
Enquanto que naqueles o amor pelo divino se vê praticamente eclipsado pelo amor a si mesmo e o 
amor ao outro, nos gulosos acontece mais freqüentemente uma orientação religiosa e,  ainda 
quando este não é o caso, pode-se falar de um amor ao ideal que corresponde ao âmbito do amor 
ao divino na forma mais ampla que entendo este termo. 
      Precisamente a religiosidade ou os afãs espirituais podem constituir um escape para as 
pessoas com este caráter, pois não apenas as leva a desatender o imediato e o possível em troca 
do remoto e impossível, como também por uma dificuldade em matéria de disciplina e uma limitada 
capacidade de encarar-se com as incômodas profundidades da própria psiquis, freqüentemente os 
torna  amateurs que se amparam na espiritualidade sem entrar num processo de transformação 
profunda. 
      Com respeito ao amor por si mesmo, a auto-indulgência do EVII é algo como a de um pai 
acomodado e sedutor mais do que a de um bom amigo de si mesmo. Porém naturalmente o amor-
prazer é um intento de ressarcir-se ante um sentimento mais profundo de privação (como indica o 
movimento entre o EV e o EVII no eneagrama). Busca-se o prazer justamente para fugir do 
incômodo psicológico da angústia e da culpa e, na mesma medida, foge-se do próprio desamor e da 
auto-rejeição. 
      O amor-dar, como já explicado, é neste caráter, tanto como no anterior, elemento de 
sedução. Pode-se dizer, portanto, que é uma amabilidade e uma disponibilidade estratégicas. Bem 
as pintou La Fontaine em suas fábulas da raposa, que se mostra sempre amável com os objetos de 
seu desejo. Podemos também falar de um amor oportunista. Como ilustração deste tipo pode servir 
o título que um humorista deu a um de seus livros: Al patrimonio por el matrimonio. (Ao patrimônio  
pelo matrimônio.) 
(Cláudio Naranjo)

ENEATIPO II. AMOR PAIXÃO

     Entrando diretamente no tema deste capítulo, é apropriado começar a descrição dos
caracteres pelo segundo dos eneatipos, já que, assim como os orgulhosos estão entre os que
parecem mais inocentes de todo pecado na apreciação ordinária e também, são os que menos
problemas têm em serem amorosos. Justamente constituem o mais “amoroso” dos caracteres.
      O fato de que alguns caracteres sejam mais ou menos “amorosos”, no entanto, não significa
que têm menor ou maior capacidade de amar no mais profundo dos sentidos. Partamos da
premissa de que a saúde mental – e a capacidade de amar que traz consigo – sofre interferência
das patologias do caráter de equivalente seriedade. É natural que os caracteres sedutores se
mostrem mais amorosos, já que neles está em primeiro plano a falsificação do amor.
      Ainda que os orgulhosos pareçam não ter problemas em serem amorosos não significa que
não tenham problemas no amor. Uma característica diagnóstica da personalidade histriônica (forma
mais aberrante do orgulho) é sua instabilidade amorosa, ligada por sua vez à instabilidade e à
superficialidade de suas tão manifestas e intensas emoções.
      Estou seguro de que chegam à psicoterapia menos orgulhosos do que pessoas de outros
caracteres (à exceção dos luxuriosos). E os motivos mais comuns para que recorram à ajuda
profissional são, justamente, os problemas com o amor.
      Como pode ser assim, dada a sua disposição carinhosa? Quiçá pelo alto preço que
representa seu carinho, preço que manifesta sua condicionalidade. A pessoa com este caráter
sedutor se esmera em oferecer um amor maravilhoso, único e extraordinário. Suas aparentemente
reduzidas exigências são também extraordinárias, particularmente no que concerne ao amor.
      As necessidades neuróticas não se saciam no mundo real, porque sua natureza passional é
a de um poço sem fundo. Mesmo na situação ideal de encontrar-se com um amor verdadeiro, a
pessoa orgulhosa pode ser suficientemente difícil a ponto de colocar sua relação em crise, pode ser
demasiado invasora, por exemplo, ou demasiado zelosa, ou muito infantil, irresponsável ou
inconseqüente. Tanto é assim que, junto ao amor aparecem necessidades neuróticas e traços
egóicos do outro. O orgulhoso espera sempre um leito de rosas, e as críticas, a impaciência, o
aborrecimento e outras reações naturais ante seus próprios defeitos constituirão não só feridas à
sua sensibilidade como também feridas à sua imagem: idealizada, maravilhosa, sempre deleitável e
incomparável. Tais frustrações, naturalmente serão fatores de desenamoramento e pouco interessa ao caráter apaixonado do eneatipo II uma relação sem enamoramento. Daí o padrão característico
de uma busca apaixonada do amor que vai de relação em relação – terminando sempre em
desencanto ou aborrecimento; o suficiente para que seu desejo de amor não satisfeito busque novo
objeto.
      Não só as frustrações, conscientemente reconhecidas ou não, da vida cotidiana contribuem
para a deterioração das relações amorosas: também entra em jogo aquilo que é tão evidente na
vida daquele notável amante da história: Jacobo Casanova. O próprio relato de suas aventuras
inumeráveis nos faz presente que não é somente o fracasso no amor o que o impulsiona para a
aventura, mas o fato de que não busca uma vida amorosa, mas a conquista em si. Quem alimenta
seu orgulho de triunfos amorosos não se satisfaz por muito tempo com a demonstração de que o
objeto de seu interesse acaba por se lhe render. Uma vez conseguido, passará a interessar-se em
re-confirmar seu atrativo ampliando o campo de suas conquistas.
      Em ambos os casos, no entanto, o indivíduo sofre de uma espécie de superdesenvolvimento
do amor. A relação entre os sexos constitui uma paixão tão intensa que passa a eclipsar outros
interesses na vida, com o resultado de que a pessoa parece em certo sentido não ter vida própria e
inclinar-se para sua única vocação: a de sua família. Esta última estaria muito bem, se não fosse
por esta aparente vocação de abrigar, no fundo, uma sede amorosa que se disfarça
excessivamente em um dom.
      Naturalmente nada disso seria possível se não fosse porque o amor-necessidade na pessoa
orgulhosa se vê efetivamente encoberto pelo amor-dar. O auto-engano é suficientemente perfeito
para que o indivíduo se satisfaça com seu próprio dar (mais do que no caso dos outros caracteres).
Independentemente do que possa receber do outro, seu próprio dar (que implica “receber” a
necessidade do outro) confirma sua auto-imagem de doador: imagem de grande amante, de grande
mãe ou de pessoa com sentimentos muito delicados.
      Até agora falei predominantemente do amor entre os sexos, que é o campo do amor onde o
eneatipo II tende a especializar-se e onde concentra sua forma de dar e encobre sua necessidade
de receber. Terreno importante pode ser, também, a relação materno-infantil, propícia para quem se
nutre tanto de sua própria dadivosidade como da necessidade alheia.
      Para terminar, observemos o desequilíbrio particular em que se expressam, neste caráter,
os três amores que contemplamos no começo do capítulo.
      Já de início é claro que o amor a Deus a ele interessa relativamente pouco. Ainda além do
amor entre os sexos, sua orientação é mais interpessoal que transpessoal. Existe pouco espaço
para “objetos ideais” nesta personalidade tão amante do contato, para quem o amor se assemelha
ao erótico e à expressão emocional da ternura. Sua vida amorosa está plena de uma combinação
de amor ao próximo e amor a si mesmo – só que nesta combinação, como vimos, o primeiro
mascara o segundo.
      Em meu livro  Enneatype Structures   propus para este fenômeno tão central no EII (que
parece tudo dar e nada receber) a expressão “generosidade egocêntrica”. Talvez possamos dizer que
o amor por si mesmo é o maior e o amor ao outro é sua transformação – o resultado de um
espelhamento pelo qual a própria necessidade se projeta em parte no outro e, em parte,
simplesmente é negada ou minimizada enquanto que se enfatiza o dom de si. Em uma escala real o
amor ao próximo se situaria em segundo lugar, entre o amor a si mesmo e o amor a Deus, porém é
ele que chama verdadeiramente a atenção. Tanto é assim, que em muitos livros norte-americanos
acerca do eneagrama da personalidade que hoje circulam, designa-se este caráter como helper,
quer dizer “aquele que ajuda”. No entanto, sua capacidade incomparável de fazer passar sua
necessidade por abundância de coração desinteressado é o primeiro obstáculo em seu progresso
espiritual e terapêutico.
      Um  cartoon em que se vê uma negra com um cupido que deve ajudá-la a colocar o
explorador num caldeirão esclarece vivamente o fundo egocêntrico do amor sedutor, que tanto pode
se manifestar em uma “vampira” ou através de um caráter doce e infantil como o que Dickens
descreve em sua novela autobiográfica David Copperfield. A pequena Dora, a quem o escritor se
prendeu ao sentir nela o eco do caráter de sua mãe, só proclama que quer ajudar o seu adorado
cônjuge, porém é manifesta a sua incapacidade a respeito. Em seu interesse por ajudá-lo, acaba
por devorá-lo como o amor de uma vampira. Em ambos os casos, o outro se torna escravo de um
grande anseio de amor que precisa ser requisitado.
(Cláudio Naranjo)