quarta-feira, maio 19, 2010

ENEATIPO IV. AMOR-ENFERMIDADE

  
       Em sua obra Cinco Rostos do Amor, André Maurois usa o termo “amor-enfermidade” para designar a paixão amorosa atormentada que caracteriza o mundo psicológico de Proust. Diz Maurois que, à diferença de Madame de Lafayette, Rousseau ou Stendhal, Proust já não acredita que a violência da paixão “se torne legítima pela qualidade excepcional dos seres que são seus objetos”. E acrescenta: “Veremos que considera o amor-paixão como uma enfermidade inevitável, dolorosa e fortuita.”
     Comentando esta observação à luz da psicologia dos eneatipos, diria que tanto o amor do EII como do EIV são apaixonados, com a diferença de que o orgulhoso acredita, exalta e idealiza sua paixão e o invejoso (que não crê em si mesmo) apenas a sofre.
     Pode-se dizer que a pessoa invejosa é propensa ao amor. A inveja é um sentimento carencial, uma voracidade do outro, uma espécie de canibalismo amoroso que se autofrustra por seu excesso. Este excesso leva à frustração por dois motivos: porque pede mais do que lhe é dado esperar e porque molesta o outro com sua insistência. A situação pode ser comparada à do bebê que morde o peito da mãe em seu afã; a frustração que o levou a mordê-la em primeiro lugar se soma à produzida por uma mãe dolorida que lhe faz cara feia ou o rejeita.
     A exigência excessiva é resposta à uma frustração anterior, naturalmente. É como se estivesse dizendo: “Dá-me porque não me deste o suficiente, compensa-me! Existe nesta exigência de compensação um matiz de vingança. Para um adulto que não se desconhece completamente, a situação se complica porque se sabe “mordedor”, e aquele que tem uma imagem negra de si mesmo – alguém que percebe a carga agressiva que existe em seu amor – não se sente digno e antecipa a rejeição. É algo bem conhecido que a antecipação da rejeição se torna realidade. Um conhecido chiste o explica: alguém se dirige para a casa de um amigo para pedir-lhe o violão emprestado. Já a caminho da propriedade vizinha, pensa que pode ser uma má hora pois talvez seu amigo esteja comendo. Nos poucos minutos de caminhada, fantasia que não só seu amigo ficará aborrecido como terá pouca boa vontade para emprestar-lhe o instrumento. Um violão é uma coisa muito pessoal para alguém que tenha se dedicado tanto a tocá-lo... Depois de ter batido na porta, o amigo o recebe e sorrindo lhe pergunta acerca do motivo de sua visita. Ele não consegue evitar responder: “Vá para o diabo com seu violão!”
     Mesmo sendo o gesto da inveja um excessivo pedir, demasiada exigência, esta necessidade do amor alheio se baseia em uma correspondente incapacidade de valorizar-se ou querer a si mesmo; a pessoa depende exageradamente do outro não por simples desconexão – como no caso do EIII – de seus valores, mas por uma desvalorização mais presente que chega a extremos de uma auto-agressão consciente ou de ódio a si mesmo, um sentimento de ridículo. Quando se fala de uma paixão amorosa, é este o tipo de amor o que se tem presente; o amor-enfermidade, como disse Maurois.
     Pode-se dizer que a intensidade da importância que se dá ao amor o converte numa grande paixão; porém mais que paixão poderia chamar-se enfermidade, por seu elemento de dependência e insaciabilidade. Uma dificuldade adicional para a pessoa que tanto necessita carinho se sinta querida, além de sua auto-invalidação é a invalidação do sentimento do outro: “Se tu queres a mim, que sou uma porcaria, que tipo de pessoa és tu? Se podes enganar-te tanto, tua necessidade deve ser tão grande quanto a minha.” A pessoa não pode conceber-se querida e não se permite a satisfação ainda quando poderia dizer-se que a conseguiu, embora isto seja difícil porque é muito característico deste tipo ver o que falta mais do que o que possui. O amor não é suficientemente perfeito, ou suficientemente exaltado ou suficientemente romântico para chegar a tocar a sua sensibilidade. Um amor tão suscetível de ser ferido ou frustrado se contamina de ressentimento precisamente pela frustração ou a necessidade.
     O EIV é um caráter demasiado serviçal, sempre à disposição, adaptável, inclusive obsequioso, empático, ajudante, sacrificado, que agüenta até níveis masoquistas a frustração e o sofrimento, porém ao mesmo tempo cobra-se ou se compensa por todo o seu sacrifício através de uma exaltação de seu próprio desejo frustrado, que se torna voracidade inconsciente.
     O amor dos invejosos torna-se mórbido pela intensidade de sua sede do outro, por sua interpretação pessimista das situações e sua tendência à autofrustração. Tão característica como isto ou mais é a tendência a pedir por meio de um “pôr-se doente”. A associação da atitude romântica com a enfermidade é suficientemente reconhecida para que tenha graça para qualquer um o chiste que encontrei tempos atrás em uma revista: um médico inclinado sobre o leito de um enfermo, dizia à sua mãe: “Seu filho é um poeta muito doente.”
     Quanto menos permitido é o pedir e mais vergonhoso o desejo, maior é a necessidade de atrair o objeto do desejo “inocentemente”, quer dizer, sem culpa, através da intensificação da experiência – intensificação histriônica, pode-se dizer – da necessidade e sua frustração. Quanto mais proibida é a exigência, mais necessário se faz para este caráter exigir atenção e cuidados, aparentemente sem pretendê-lo, seja através do sofrimento, de seu papel de vítima ou de sintomas físicos e dificuldades variáveis.
     Às vezes, chama-se a isto, “chantagem emocional” e observa-se não só entre amantes como entre pais e filhos. A sedução através da debilidade e da necessidade é para nós um recurso feminino tão conhecido como a sedução das irresistíveis, que um par de gerações atrás se expressava em desmaios. Não é, no entanto, mais que uma amplificação do pranto com que toda criança chama sua mãe pedindo-lhe a satisfação de suas necessidades ou socorro.
     Contudo, é necessário distinguir o lamento da verdadeira compaixão por si mesmo. Apesar de sua busca de compaixão e sua queixa de não encontrá-la o EIV dificilmente a sente por si e nem sequer lhe resulta fácil recebê-la. Nem para receber coisas boas sente-se com direito, pois não só não se ama, odeia-se, desvaloriza-se e se rejeita.
     O amor transpessoal, mais além do eu e do tu, pode-se dizer que não está caracteristicamente na esfera do religioso nem da do bem tanto como na esfera da beleza. Os valores superiores com os quais a pessoa se conecta são principalmente o amor à arte e o amor à natureza. Talvez o amor a um Deus pessoal se complique com o não se sentir merecedor, porque a evocação do divino só intensifica a dor da culpa. Além do mais admirar é coisa muito problemática para os competitivos.
     O erótico pode ser veementemente perseguido, pois é algo que tira o indivíduo do ordinário e acalma sua sede de intensidade; porém existe neste caráter uma dificuldade de entregar-se ao prazer, e também ao outro. Tanto é assim que Wilhelm Reich interpretou o masoquismo como expressão de uma inibição orgástica. Também é proeminente a expressão do amor-dar, tipo ágape, que se manifesta como orientação ao serviço, defesa dos oprimidos e empatia. Os que necessitam de piedade não sabem recebê-la, porém se apiedam facilmente dos demais.

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