quarta-feira, maio 26, 2010

ENEATIPO I. AMOR SUPERIOR

      Escassamente se distingue no uso habitual a ira e o ódio, posto que se chama ódio o oposto
do amor. Segundo isto, a paixão do EI seria um antiamor. Seu caráter manifesto, no entanto, não é
este “contra-amor”, que descrevemos como próprio da violência, o atropelo e a exploração do EVIII.
Já vimos como o EI é um caráter bom – entendendo-o por alguém que não odeia, mas que ao
contrário,  professa o amor.  Assim como o amor do EII é um fenômeno emocional em que falta a ação, o amor do EI está
constituído de intenções e atos em que falta a emoção: um amor pouco terno, duro inclusive, dir-se-
ia, se a proibição da dureza e um empenho consciente em ser terno não o fizessem menos
aparente.
      As personalidades dos eneatipos VIII e I são comparativamente agressivas, só que em um a
agressão (valorizada) está nua e em outro (desvalorizada), negada, e de certo modo
supercompensada , especificamente na vida amorosa e no aspecto amoroso das relações e
situações humanas. Enquanto que o EVIII é um “vilão” explorador que exige indulgência ou
cumplicidade, o EI se põe frente ao outro como doador generoso e, em virtude disto, sentirá que tem
direitos correspondentes.
 Sua agressão não desaparece, no entanto, mas se metamorfoseia em exigência e
superioridade, em um domínio ou controle sobre o outro não menor do que no caso do caráter
avassalador – só que aqui se disfarça (ante os olhos do próprio sujeito) de algo justificado por
princípios impessoais.
      Uma ilustração de Quino explica o profundo auto-engano dos “justiceiros morais” ou
perfeccionistas (para distingui-los dos justiceiros amorais luxuriosos), que disfarçam seus desejos de
exigências justas presumidamente desinteressadas: a justiça, que comumente se personifica em
uma mulher cujos olhos vendados não distinguem pessoas nem interesses, leva uma venda sobre
somente um dos olhos (que comicamente nos recorda o tapa-olho de um pirata, em sua imagem
estereotipada), e com sua poderosa espada corta uma fatia de presunto.
      A imagem do presunto aqui parece contradizer implicitamente essa pretensão
desinteressada dos puritanos, caricaturada por Canetti no retrato de uma vestal incorruptível cuja
boca está dedicada exclusivamente ao serviço das palavras e nunca se corrompe recebendo algo
tão baixo como os alimentos dos que vivem, os comuns mortais.
      A forma de afirmação dos desejos é, então, sua transformação em direitos; e assim como os
desejos do rebelde se sustentam em seu poder bruto, os do virtuoso se apóiam em sua
superioridade moral. A tal transformação do “eu quero” em “tu deves” alude Quino no resto do seu
cartoon, que nos mostra, junto à poderosa mulher gorda (que como paródia da justiça cortava o
presunto), sobre uma cadeira alta, um juiz; um juiz que, por sua estatura e tipo de cadeira que usa,
assim como pela presença de um brinquedo no chão e seu gesto de lamber-se, enquanto come, é a
imagem de uma criança, tão impotente como poderoso é o braço da justiça.
      Aludir a esta perturbação do amor como “amor superior” implica em um “amor inferiorizante”:
o outro, tão beneficiado em aparência por seus atos benévolos, vê-se privado de qualidade moral ou
estatura espiritual; é em certa medida vilanizado enquanto é controlado e exigido.
      A inferiorização do outro se faz através da crítica, seja a crítica explícita e consciente a seus
rendimentos, decisões ou atitudes (“fizeste isto ou aquilo mal” ou “não aprovo tal aspecto de tua
vida”) como a crítica menos explícita de um não se dar por satisfeito ante manifestações do outro
que não alcançam o ideal de excelência perfeccionista.  Entre os três amores, o mais dominante aqui é o amor admiração: o amor à grandeza, ao
ideal. O amor ao próximo vem em segundo lugar, porque é um amor à altura dos ideais, um amor
que se associa ao dever, por ser um amor pobre em  ternura. E, mais postergado, encontra-se o
amor a si mesmo, inconsciente e negado. Sua moral não permite os próprios “desejos egoístas”
assim como não permite os alheios. Pode-se falar neste caráter de uma atitude antivida, em vista do
excessivo controle repressor dos próprios impulsos, do tabu de sua instintividade e da do outro.
Ainda que se trate do amor superprotetor em relação aos filhos ou do amor possessivo em relação
ao parceiro, não só há uma perda de espontaneidade do próprio indivíduo, mas também uma
relação que destrói a espontaneidade do outro, que se vê envolto em um campo repressor invisível.
      Este amor, excessivamente condicional, exige méritos inalcançáveis e perde a
espontaneidade. Desconhece sua destrutividade; assume o papel parental não para apoiar, mas
para interferir com a criança interior do outro.

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